Dia Nacional Contra o Abuso Infantil: escuta especializada ajuda a identificar violência infantojuvenil em Sorocaba
18/05/2025
(Foto: Reprodução) Dados do Gpaci apontam que a maioria dos casos de violência infantojuvenil ocorre dentro de casa e envolve familiares da vítima. Dos 407 casos atendidos neste ano, 161 envolveram violência sexual. Número de crianças e adolescentes vítimas de violência atendidas pelo serviço de escuta especializada do Gpaci, em Sorocaba (SP), aumentou 40%.
Reprodução/TV Globo
O número de crianças e adolescentes vítimas de algum tipo de violência atendidas pelo serviço de escuta especializada do Grupo de Pesquisa e Assistência ao Câncer Infantil (Gpaci), em Sorocaba (SP), aumentou 40%. O dado compara os atendimentos realizados entre janeiro e abril deste ano com o mesmo período do ano passado.
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Dos 407 atendimentos realizados neste ano, 161 envolveram crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. Neste domingo (18), Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, o g1 ouviu especialistas que destacam esse tipo de violência como um dos maiores desafios no enfrentamento da violência infantojuvenil.
"Primeiramente, pela complexidade do trauma causado nas vítimas, que afeta profundamente seu desenvolvimento psicológico, emocional e social. As sequelas podem perdurar por toda a vida se não houver intervenção adequada e tempestiva", aponta o presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA) de Sorocaba, Hugo Bruzi Vicari.
Dados divulgados pelo serviço de escuta especializada do Gpaci indicam que 87% dos casos de violência - seja sexual, física e/ou psicológica - ocorreram dentro do ambiente familiar. O relatório também revela que, na maioria das situações, o suposto agressor é o próprio pai.
Para Hugo, quando a violência ocorre dentro de casa e é praticada por familiares da vítima, pode ser mais difícil para a criança compreender que aquela situação é errada e, consequentemente, dificulta a rapidez da denúncia.
"Outro aspecto que deixa esta violência mais desafiadora é o silêncio que frequentemente a envolve. Muitas vezes, o agressor é alguém próximo à criança ou adolescente, como familiares ou pessoas de confiança. As vítimas podem sentir medo, vergonha, culpa ou até mesmo não compreender completamente o que está acontecendo, especialmente as mais novas", avalia.
A psicóloga Kátia Feitoza Leite Soares explica que o abuso sexual infantojuvenil deixa em suas vítimas marcas físicas, psíquicas, sociais e sexuais, gerando prejuízo por toda a vida da vítima.
"Prejuízos de autoimagem, autoconfiança e confiança em outras pessoas, entre muitos outros quadros. Acompanhamento de equipe multidisciplinar, com profissionais como psicólogos, psiquiatras, terapeutas ocupacionais, psicopedagogos, além de, claro, ser conduzida a um ambiente de cuidados e segurança, onde a vítima se sinta protegida. São ações que ajudam a vítima a trabalhar os traumas gerados por situações de violência e talvez ressignificar aqueles momentos, porém a superação é um processo muito particular e depende de muitos fatores", afirma a profissional.
Perfil das vítimas
De acordo com o relatório do Gpaci, a maioria das vítimas atendidas nos primeiros quatro meses deste ano é do sexo feminino. A faixa etária com maior número de atendimentos corresponde a crianças de 6 a 11 anos, que representam 41,2% dos casos.
Em relação aos supostos agressores, o relatório aponta que a maioria (70,7%) é do sexo masculino, com idades entre 25 e 59 anos. Ainda segundo o levantamento, 16 dos suspeitos tinham, no máximo, 9 anos de idade, o que, segundo a instituição, pode indicar a reprodução de violências anteriormente sofridas.
Os números acima incluem casos de violência sexual, física e/ou psicológica.
Relatório do Gpaci mostra perfil das crianças e adolescentes vítimas de violências em Sorocaba (SP)
Arte g1
Proteção começa com escuta
Ao tratar da violência sexual, o presidente do CMDCA destaca outro desafio: a atuação do sistema de Justiça. Ele explica que muitas vezes esse tipo de violência ocorre sem deixar evidências físicas, o que torna mais difícil comprovar os abusos e responsabilizar o agressor.
"Daí a importância fundamental da escuta especializada, que permite coletar o relato da vítima de forma adequada, respeitando seu tempo e suas limitações, e preservando o valor probatório desse depoimento", analisa.
O projeto "Acolher para Proteger", serviço de escuta especializada, foi implementado no Gpaci em setembro de 2021, em parceria com a prefeitura de Sorocaba e com a promotora de Justiça da Vara da Infância e Juventude de Sorocaba, Cristina Palma, que acompanha o serviço desde então.
Em um ambiente acolhedor e reservado, crianças e adolescentes de até 17 anos que foram vítimas ou testemunhas de violências são ouvidas de forma atenta e sem interrupção.
Segundo a coordenadora do projeto, Giovanna Leme, o objetivo do atendimento é reunir o máximo de informações possível para garantir a proteção social da vítima e encaminhá-la aos demais órgãos da rede. A intenção é evitar que ela precise reviver os episódios tendo que relatá-los repetidamente e para diversas pessoas.
"Nosso atendimento é para ouvir apenas uma vez a vítima para que ela não seja revitimizada, tendo que relatar diversas vezes a situação traumática para várias pessoas. Porque quando ela começa a repetir diversas vezes a situação de violência, ela, de tanto ser questionada, pode até se questionar sobre a situação, se sentir culpada. Nós vamos documentar essa fala da vítima e encaminhar para a rede de proteção, para fazer os acompanhamentos posteriores".
Escuta especializada é feita em uma sala com elementos infantis dentro do hospital Gpaci, em Sorocaba (SP)
Gpaci/Divulgação
O trabalho é desenvolvido por psicólogos, assistentes sociais e pedagogos, profissionais formados na área de Direitos Humanos e especializados em atendimento com crianças e adolescentes. Conforme a coordenadora, os profissionais não fazem questionamentos à vítima sobre a violência que ela sofreu, mas conduzem a conversa para que o menor se sinta mais a vontade para relatar seus sentimentos e a sua rotina.
"E quando é necessário fazer algum tipo de pergunta, sempre são perguntas abertas. O que seria uma pergunta aberta? Se a gente for falar sobre sentimentos, ao invés de perguntar se diante de uma situação ela ficou triste, e a resposta vai ser sim ou não, que é uma pergunta fechada, a gente faz uma pergunta de como ela se sentiu diante da situação e nisso pode vir inúmeros tipos de sentimentos", orienta.
Equipe de escuta especializada conta com psicólogos, assistentes sociais e pedagogos
Gpaci/Divulgação
A coordenadora explica que, durante as conversas, são utilizados livros e personagens infantis que ajudam a abordar os contextos de violência de forma mais leve e menos invasiva.
"Por exemplo, o livro Pippo e Fifi, que vai falar um pouco sobre o toque do sim, o toque do não, fala um pouquinho sobre violência sexual. Usamos os bonecos Pippo e Fifi e também os bonecos lúdicos, que também têm as partes íntimas e a gente consegue ir conversando com a criança para fazer uma prevenção sobre violências, tanto sexual quanto física, a criança espontaneamente começa a relatar a situação de violência", relata.
Durante a escuta especializada, profissionais utilizam livros e personagens infantis para tornar a conversa mais leve
Gpaci/Divulgação
Mais casos identificados
Para o presidente do CMDCA, o aumento no número de crianças e adolescentes atendidos pela escuta especializada do Gpaci não representa, necessariamente, um aspecto negativo, pois indica o fortalecimento da rede de proteção e uma maior conscientização da sociedade sobre a importância de denunciar casos de violência.
"Demonstra que mais casos estão sendo identificados e encaminhados aos órgãos competentes. Isso significa que crianças e adolescentes que antes permaneceriam em situação de vulnerabilidade, possivelmente sofrendo violência continuada, agora estão recebendo a proteção e o cuidado necessários. Além disso, o trabalho que temos desenvolvido no CMDCA em parceria com as escolas, unidades de saúde e outros equipamentos da rede de proteção tem contribuído para a identificação precoce de casos suspeitos, permitindo intervenções mais rápidas e eficazes", analisa.
Escuta não substitui terapia
Giovanna destaca que a escuta especializada não substitui a psicoterapia, pois esta envolve um acompanhamento contínuo, enquanto a escuta é um atendimento pontual.
"Muitas vezes a criança vai para a escuta especializada, mas ela não relata uma situação. E isso não quer dizer que ela não tenha sofrido a situação ou que ela não precise de acompanhamento psicológico. Quando a gente tem suspeita de violência sexual, mesmo confirmando ou não, sempre nós fazemos o encaminhamento para o CAPS (Centro de Atenção Psicossocial)", explica.
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Apesar de ser um atendimento único, a psicóloga ressalta que a escuta especializada é fundamental para identificar sinais de vulnerabilidade e orientar os encaminhamentos adequados.
"Deveria ser oferecido em todos os ambientes onde existem crianças e/ou adolescentes, principalmente os que se encontram em situação de vulnerabilidade social. A escuta é uma forma de dar voz a situações onde as vítimas muitas vezes não sabem onde ou como podem pedir ajuda frente a situações onde seus direitos são violados. Este processo, diferente do processo de depoimento especial, não quer uma 'confissão', mas sim garantir o bem-estar da criança/adolescente", avalia Kátia.
Escuta especializada acontece no hospital Gpaci
Reprodução/TV TEM
Instituições devem estar atentas
O presidente do CMDCA ressalta que as instituições que lidam com crianças e adolescentes, especialmente as escolas, têm um papel fundamental na identificação e denúncia de casos de violência.
"As escolas ocupam uma posição privilegiada nesse contexto, pois são espaços onde as crianças e adolescentes passam grande parte do seu tempo, estabelecendo vínculos de confiança com professores e outros profissionais. Esses educadores têm a oportunidade de observar mudanças comportamentais, sinais físicos ou emocionais que podem indicar situações de violência", afirma Hugo.
Opinião compartilhada pela coordenadora do projeto no Gpaci.
"A gente tem o dever, enquanto sociedade, comunidade, família, fazer as denúncias em relação às violências. Muitas vezes em atendimento, quando a gente identifica que essa criança vai voltar para o risco, imediatamente nós acionamos o Conselho Tutelar. E sempre deixando claro para a criança que nós estamos comunicando o Conselho para a proteção dela. Porque a gente também tem que entender que a criança pode se sentir culpada. A gente precisa explicar que ela precisa de proteção e porque ela precisa de proteção", afirma Giovanna Leme.
A psicóloga ressalta que a rede de apoio que envolve a criança e o adolescente precisa entender que a violência deixa marcas e pode gerar consequências significativas. Por isso, é comum que a vítima apresente comportamentos influenciados pelas experiências traumáticas vividas.
"É preciso oferecer a elas um ambiente seguro, onde ela seja respeitada. Se possível proporcionando acompanhamentos adequados com profissionais especializados que ajudarão a criança com os traumas", conclui.
O Conselho Tutelar pode ser acionado em casos de suspeitas de violência infantojuvenil
Conselho Tutelar de Sorocaba/Divulgação
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